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Jung e os Estudos Junguianos



Nise da Silveira e C. G. Jung tinham interesses em comum, ambos eram pensadores que frequentavam diferentes lugares na psicologia, além de outras áreas, e buscavam entender múltiplos olhares sobre o coletivo. Podemos dizer que uma das maiores contribuições de Nise, como de Jung, é a perspectiva inclusiva lidando com as necessárias integrações epistemológicas dos estudos simbólicos de Jung (2017), na teoria e na prática de ambos (MELLO, 2021). Aqui estamos tratando da aceitação de outras formas de ser, incluindo o social, do trabalho com os animais e dos estudos sobre o espaço inorgânico. Assim, esse olhar generoso desencadeou um modelo de tratamento revolucionário, acolhedor e criativo. O trabalho com a arte foi utilizado por ambos. A compreensão da arte surge como expressão do contexto de tempo e espaço na qual está inserida sendo vista de forma prospectiva, que também aponta caminhos na solução das feridas coletivas deste mesmo contexto. Como na clínica junguiana (MELLO, 2013), Nise percebe que a arte e as imagens produzidas por seus clientes “Infalivelmente... revelaram significados” (SILVEIRA, 2001, p. 93). O Museu de Imagens do Inconsciente surge com o estudo de leitura de imagens e afeto catalisador: encontro entre a clínica junguiana ampliada; o pensamento mítico, simbólico; a museologia e a arte em geral.

 

...  Reuni essas imagens em... longas séries. Não vejo como possível entrar em contato com um homem ou uma mulher, e tratá-los seja por qual método for, sem fazer a mínima ideia da maneira como este ser está vivendo o tempo e o espaço, sem ouvir os estranhos pensamentos que lhe ocorrem e as imagens que avassalam a sua mente” (ibid)

 

É justamente o desconhecido e o assustador, ao contrário do que se imagina em nossa cultura, que precisamos aceitar para sermos mais inteiros. Os estudos do pensamento mítico vão também nos ensinar o caminho: “O pesquisador precisará aprender essa linguagem pelo estudo dos mitos. Segundo Jung ... psique é - constituída por uma trama de temas míticos” (SILVEIRA, mimeo, p. 19). Sigamos, então, pelo mito.


No mito o herói Perseu corta a cabeça da Medusa, porém “a relação entre Perseu e a Gorgóna é complexa: não termina com a decapitação do monstro” (CALVINO, 1995, p. 17). Do sangue da Medusa nasce ao mesmo tempo Pégasus, um cavalo alado e Crisaor, um monstro. Pégasus é a expressão da arte e faz jorrar no monte Hélicon a fonte em que as Musas irão beber. E seu irmão é um monstruoso: são os filhos inseparáveis do perigoso ato de viver.

 

Quanto à cabeça cortada, longe de abandoná-la, Perseu a leva consigo, escondida num saco...

É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que lhe traz consigo e assume como fardo pessoal (ibid).

 

No mito a forma de lidar com a Medusa é modelar ao precisar lavar as mãos após outra sangrenta batalha, “ameniza a dureza do solo com um ninho de folhas, recobre com algas que crescem sob as águas, e nele deposita a cabeça da Medusa, de face voltada para baixo” (OVÍDIO apud CALVINO, 1995, p. 18): "Versos extraordinários para expressar a delicadeza da alma necessária para ser um Perseu dominador de monstros” (ibid). A deusa mascarada é enfrentada por Perseu que não olha para ela diretamente. A forma de lidar com a potência irracional é demonstrada pelo mito, com a aceitação de todas as diferenças, e nossa loucura. A Medusa, de origem oriental, é nomeada, um feito extraordinário, mas permanecendo fora da Polis, na floresta. Ela é o contraponto radical, como Dioniso, outro deus mascarado, à Penteu, que não acolhe o irracional, sendo o modelo másculo, o monarca, a lei (VERNANT, 1988).


"Penteu quis defender o pensamento racional, que começava a florescer na Grécia, das violentas forças irracionais agitadas por Dionysos. Mas faltava-lhe condições para uma empresa desse porte. [...] Faltava-lhe aquela sutileza que viria caracterizar o gênio grego" (SILVEIRA, 1993, p. 19). A luz e a sombra nascem e revelam-se juntas, como os irmãos Pégasus e Crisaor, o criativo e o destrutivo em nós, necessitando, a um só tempo, de firmeza e delicadeza para lidar com esse “tremendum” que nos aterroriza.


Nise da Silveira introduz atividades que vão permitir visualizar e objetivar as imagens, assim:

“O tremendum é exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em qualquer oportunidade que o doente recorde da vivência original e seus efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém” a proteção (JUNG apud SILVEIRA, mimeo, p. 18). O tremendum pode ser entendido como as forças psíquicas que produzem as imagens que guardam os afetos mais poderosos. Rudolff Otto (2007) fala dessa potência dos três Ts: temor, tremor e terror que sentimos e que costumamos chamar de deuses. E mesmo que a maior parte não concorde, as experiências demonstram “que as imagens simbólicas podem ser apreendidas” (SILVEIRA, mimeo, p. 20) pela percepção inconsciente “independentemente do intelecto influindo sobre o curso do processo psicótico” (ibid). A nossa saúde depende dos afetos e das imagens que transformam. Parece propício que neste Kairós (tempo oportuno) o nome de Nise surja como heroína do coletivo. Ela está à altura da etimologia de herói: “herós” e “servã” (BRANDÃO, 1988, p. 5), a que guarda e conserva as imagens: guardiã da vida. Que enfrenta os abismos na luta pelos excluídos.


REFERÊNCIAS


BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Volume III, 1988.

CALVINO, I. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Petrópolis: Vozes, O.C. 14. Volume 2, 2013.

MELLO, E. C. C. Casos, cores e vasos - alquimia e os fundamentos da arteterapia. 2013.

______________. II Seminário Leitura de Imagens: a epistemologia de Nise da Silveira. Anais Grupo de Pesquisa Memória, Museus e Patrimônio. Hólus Consultoria e Assessoria. 1ª. Edição – Rio de Janeiro – 2021.

OTTO, R. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.  

SILVEIRA, N. (1993). Dyonisos - um comentário psicológico, Quatérnio - Revista do Grupo de estudos de C. G. Jung, 18-27.

___________. O Benedito, mimeo.

___________. O Mundo das Imagens. Ática: São Paulo, 2001.

VERNANT, J. P. A morte nos olhos - figuração do outro na Grécia Antiga Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988. 

 
 
 
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