Estudo Diferencial de Eros, Amor e Paixão
- Rafael Leporati
- 14 de set. de 2022
- 32 min de leitura
Atualizado: 6 de fev. de 2024

Elizabeth Christina Cotta Mello2
Unitermos: Eros, Logos, Amor, Poder, Paixão
SUMÁRIO
Eros é entendido pela psicanálise e pela psicologia analítica como uma força original do psiquismo. Os diferentes pontos de vista produzem definições a paixão e o amor que dependem de cada teoria. Jung é o único que admite a participação de Eros na paixão é no amor, diferenciando ambos os conceitos.
ABSTRACT
Eros is understood by psichoanalysis and by analytical psicology as an original force of psychism. Differents points of view produce definitions of passion and love, which depends on each theory. Jung is the only one who admits Eros’ participation on love or passion, differentiating both concepts.
Paixão: “A duração de nossas paixões dependem tão pouco de nós quanto a duração da vida” Le Rochefoucault
Amor: “É certo, afinal de contas, que neste mundo nada nos torna necessários a não ser o amor” Goethe
Este tema surgiu inicialmente a partir de estudos desde a monografia de graduação (1986) o doutorado e posteriormente realizado com a colaboração de Vanda Santanna de Abreu, debrucei-me em um assunto que ainda não é bem estudado devido a sua importância. Nas universidades de Psicologia normalmente as disciplinas são isoladas e as teorias psicológicas quando são oferecidas, não são comparadas, até em função da riqueza e complexidade de cada uma delas. O tema Eros, Amor e Paixão, só possuem trabalhos e artigos localizados, desde da década de 90 ainda não encontrei nenhuma publicação comparando autores da Psicologia. Seria fundamental especialistas de outras linhas teóricas, como existencialismo, humanismo e psicologia Reichiana, entre outras, pudessem dar continuidade a este meu esforço inicial.
Gostaria de citar as revistas da Sociedade Brasileira de Psicologia Junguiana onde os temas amor, paixão e relacionamentos amorosos são desenvolvidos, embora uma revista não seja sobre o tema, mas já são um.
Este artigo surgiu de um projeto de doutorado para a UFRJ, que seria orientado pela querida professora doutora, Maria Luiza Seminério que, posteriormente, sugeriu alguns livros essenciais da psicanálise lacaniana. Posteriormente fui parcialmente publicado na extinta revista Agora da Universidade Veiga de Almeida. Este tema foi por mim estudado desde a monografia da universidade até o projeto de doutorado, e é tema recorrente, por parte dos alunos da pós-graduação de Teoria e Prática Junguiana, e naturalmente da clínica.
2 * Psicóloga Clínica, Membro Analista da SBPA – IAAP. Mestre em Psicologia pela F.G.V. - RJ, Doutora em Psicologia Social e da Personalidade, UFRJ. Pós-doutora pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (MCT). Coordenadora do curso de Teoria e Prática Junguiana no Rio de Janeiro, Brasília, Vitória e Recife e Coordenadora deste e do curso de Arteterapia e Processos de Criação - tendo ministrado aulas na graduação e pós-graduação de várias universidades, da Escola Naval e professora da FAMATH, UVA. Atual presidente da SBPA – RJ e parte do grupo de pesquisa da ANPEPP.
início sobre a comunicação entre diferentes abordagens, tocando no assunto, como sobre relacionamentos, lacunas de nossa área, e este último assunto, de interesse geral.
Os sentimentos em geral, particularmente os amorosos, são vivências que envolvem, desestabilizam e desestruturam os indivíduos. O alcance social e a atualidade imediata do assunto, que pontua uma preocupação atemporal das pessoas, resume sua abrangência. Cabe salientar que suas manifestações são organizadas e delimitadas, em parte, pelo contexto histórico-cultural que as favorece ou não. No caso da contemporaneidade o tema afeto, que envolve sentimento, inteligência emocional e ética, está em evidência nas discussões acadêmicas e dos órgãos normativos como Conselho Regional de Psicologia, cursos e nas publicações nacionais e internacionais. Sabemos que a psicologia analítica já preconizava que a próxima função psicológica a ser desenvolvida e problematizada seria o sentimento, com o perigo de ser utilizada hoje como meio de controle social, que pode se tornar uma forma de apropriação do sistema na modernidade.
O interesse desse artigo é preencher a lacuna existente no sentido de uma sistematização dos conceitos de amor e paixão, confrontando a psicologia analítica e teorias psicanalíticas, com o objetivo de iniciar uma discussão entre as diversas linhas teóricas sobre o tema, bem como favorecer a reflexão em uma sociedade onde amar é algo somente divino (espontâneo), sem acreditar na aprendizagem do amor, não necessitando de tempo para nos dedicarmos aos relacionamentos.
O envolvimento amoroso entre os sexos têm sido a inspiração mais constante das artes em geral, especialmente no Ocidente atual.
A psicologia, por sua vez, não parece estar cumprindo o seu papel de investigação do tema com o devido cuidado que ele merece. Isto é posto de forma afirmativa já que devido a frequência em que aparece como questão estrutural do ser humano, apontando para uma importância quantitativa e qualitativa individual e coletivamente falando.
Causa estranheza a exiguidade de trabalhos sobre o assunto em psicologia. Independentemente da linha teórica estudada e das próprias definições que o amor e a paixão venham a ganhar, sabe-se que estes conceitos são demarcadores da maior parte das teorias psicológicas.
O amor e/ou a paixão estão em conexão direta com elementos como Eros, narcisismo, autoerotismo, escolha objetal, personalidade, etc. É por isso um tema central para a clínica com todos as suas nuances e perspectivas.
Nossa cultura acadêmica, por sua vez, é patriarcal, concentrando-se em trabalhar o Logos, (BYINGTON, 1988) com sua tecnologia e sua preocupação retórica. Iniciamos com a afirmação da psicologia analítica (JUNG, 1984), de que quando se encontra uma ferida, uma falta no ser individual ou na coletividade, pode-se dizer que este é o ponto de ruptura capaz de deixar emergir o necessário para consciência. Percebemos, ao nos debruçarmos sobre o assunto, que somos colocados no lugar mesmo de discussão epistemológica dos pressupostos das teorias psicológicas, e da própria subjetividade coletiva.
Fromm (1982) afirma que o amor (de todas as formas) é a única resposta satisfatória para a questão da existência humana. O autor citado afirma ainda que na nossa cultura raramente nos dedicamos a arte de amar apesar da avidez pelo amor, como que concorda Johnson (1990). Assim para Fromm quase toda nossa energia está voltada para a aquisição de dinheiro, poder e sucesso. Diz ele que dificilmente “[...] haverá qualquer atividade que comece com tão tremendas esperanças e expectativas, quanto o amor” (1982, p. 23). Johnson (1990) busca uma noção social da “maturidade para a sua manutenção”. Assim, com o nosso descompromisso nada aprendemos advogando artificialidade. O mesmo autor (1987), acredita que também dentro da psique ocidental, o dito “amor romântico” é o maior sistema energético dentro da pisque. Fato que torna-se cada vez mais forte contando-se com a excedente de energia perdida pela igreja no seu processo de esvaziamento coletivo. Horney (1956) e Fromm (1982) preocupam-se também com o vazio existencial do homem moderno, e as consequências dessa falta de sentido e solidão em suas relações interpessoais. Dentro da perspectiva analítica (JUNG, 1984) quando se encontra uma ferida, ou uma falta no ser individual ou na coletividade, pode-se dizer que este é o ponto de ruptura capaz de deixar emergir o necessário para a aquisição de consciência.
A verdade é que aliado aos nossos incontáveis fracassos das nossas relações amorosas atuais, as seitas religiosas proliferam-se ferozmente. Cabe aqui questionar aonde foi parar nossos Eros.
Horney (1956), por sua vez, coloca Eros e o poder como forças originais do comportamento humano. Porém, chega a imputar a etiologia das neuroses a uma insuficiente relação com o amor na infância. Como culturalista que é, inclui os malefícios culturais que determinam ou se atrelam à angústia dos sujeitos. A importância de Eros e da sua ausência, seja ela no narcisismo (FREUD, 1910; 1917; 1920) a simplesmente no autoerotismo, dentro de uma postura lacaniana (KRISTEVA, 1988) nos permite inferir que o amor-paixão vais ser entendido como uma estrutura estruturante, ou seja, a base que fundamenta o psiquismo e como tal, é o próprio modo de realizar um atendimento clínico, como a base do humano em geral3. A autora lacaniana, famosa neste tema, resume (ibid): “Todo mal psíquico [...] é um mal de amor” (p. 15). O amor é esse cenário, de um texto cujo o preestabelecido conduz a uma realização. Dentro desta visão, nós, os “atores” são antes pelo texto jogados, e, como tal, o estudo deste “jogo” é a pedra angula da clínica e da humanidade.
Mais teorias não parecem necessárias para podermos perceber que os sentimentos amorosos que envolvem o ser humano em geral, ou ainda entre um homem e uma mulher circunscrevem questões extremamente complexas e cruciais para a psicologia, como para a própria cultura.
Necessitamos investigar um assunto que ocupa o nosso dia-a-dia no trabalho, nos consultórios e fora dele no lazer, como nas artes em geral, especialmente é importante para os nossos relacionamentos. Não é por outro motivo que a literatura que os intelectuais em geral costumam execrar como os romances lacrimosos e açucarados vendem aos quilos, sem falar dos “best-sellers” de qualquer material sobre o assunto, de qualidade diversa, que têm sido consumida vorazmente.
Os diversos segmentos sócio-culturais, a despeito de suas preferências, têm feito suas escolhas, eruditas ou não, mas o amor-paixão vende, talvez mais do que qualquer outro assunto, enxurradas de livros.
É a complexidade do tema, já apontada acima, e a complicação diária que suscita, que autoriza a colocação de que esse tema é essencial. Ter o amor e a paixão como objeto de reflexão é um desafio, já que contamos com a fronteira entre o dizível e o indizível. Importante seria também no futuro, estudarmos de forma comparativa questões como dependência, necessidade, desejo e emoção.
Contamos com muitas informações, ensaios e comentários sobre o assunto; um interesse geral sobre o tema, mas um descompasso entre a produção de “autoajuda” ou de arte em relação o que sabemos na psicologia. A arte por exemplo tem contribuído muito mais que a psicologia para nos fazer compreender os sentimentos amorosos do ser humano em geral. A arte têm governado de forma absoluta esse domínio, seja por “possuir licença poética” para se dedicar ao divertimento e prazer do homem (FREUD, 1918), ou simplesmente por sua prerrogativa de revelar na síntese sem a obrigatoriedade de explicação (JUNG, 1985); ou ainda por ser uma fórmula de poesia ou alucinação (KRISTEVA, 1988). Todavia a psicologia não pode se eximir de assumir sua parte de responsabilidade sobre um tema tão importante na vida do ser humano.
Procurando aliar o desembaraço da arte com o que a psicologia nos oferece, esse artigo visa entender os conceitos de amor e/ou paixão sobre os quais ainda existe muita discordância teórica.
Este trabalho é antes uma busca de aliar o rigor científico com o respeito pelas múltiplas manifestações sociais e individuais desses sentimentos do que um confronto de teorias psicológicas.
EROS
Para definir os sentimentos amorosos é preciso iniciar o estudo com Eros. As linhas psicológicas estudadas, tal como a mitologia, arte e religião, posicionam as paixões e/ou amor como fazendo parte da esfera de Eros.
Que outro lugar para a psicanálise seria mais próprio de repetir e reviver, recriar e descobrir esse Eros e sua ausência, do que na presença de um outro carregado de “(im)possibilidades”? Ou seja, Eros está na base da psicanálise.
E ainda que outros fatores se acoplem ou determinem essas relações, é no âmbito do significado de Eros que o sentimento amoroso encontra o seu lugar. Em Freud (1973) a questão amorosa está engendrada na trama familiar. A conceituação dos termos amor e/ou paixão, e as escolhas posteriores da vida adulta passam, então, necessariamente, por uma reflexão a nível ontológico. Além disso, o autor admite que todas as tendências amorosas, sejam elas com o objetivo sensual ou não, possuem a mesma origem sexual. Todos os impulsos forçam seu caminho no sentido de união sexual, mas em outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou impedidos de atingi-lo, embora sempre conservem o bastante de sua natureza original para manter reconhecível sua identidade (FREUD, 1985, p. 116).
Em função de sua colocação da libido como Eros e da especificidade de sua origem, Freud foi criticado por Fromm (1982), Horney (1956) e Jung (1987). Freud argumentou que nada fez além de manter uma unificação já antes efetuada pela linguagem que criou a palavra amor com seus inúmeros usos. Em sua defesa valeu-se da religião (carta de São Paulo aos Coríntios) e da filosofia (Eros platônico). Jung, admite uma outra forma psicológica de criação que aparece também nos mitos (cosmogonia): Logos ou Pneuma. Fromm questiona Freud por ver no amor apenas uma sublimação - da pulsão sexual. Ao contrário, o desejo sexual é, no seu entender, expressão da necessidade de união biopsicológica do homem: necessidade de amor.
Jung (1984), por sua vez, acredita que a descoberta de Freud, de que Eros era a força motriz causal produziu uma reviravolta considerável. Porém, contesta (JUNG, 1989), que a questão sexual, entendida como pulsão que surge ancorada ao corpo seja origem de todo o processo a seguir. Para ele a espécie de sexualidade que o paciente possui represada, voltará às proporções normais tão logo esteja desimpedido o caminho para a sua expansão. Na maioria das vezes são as emoções envolvidas nos ressentimentos familiares que acabam por produzir esse represamento da energia vital e será esse represamento que se manifesta como sexualidade infantil. A sexualidade, assim não se constitui no termo adequado, pois trata-se de uma “[...] descarga de tensões que estariam melhor estabelecidas em outro campo existencial” (ibid, p. 327). Para a psicologia analítica tem mais sentido debruçar-se nas diversas criações culturais espontâneas (tradições), evitando reduzir nossas explicações a determinados contextos. Horney, (1978) fala de Eros como maneira exemplar do homem lidar consigo mesmo e com o mundo, a neurose é a sua falta, chegando a citar que o poder é determinante no comportamento do outro grupo, o dos neuróticos, mas continua a privilegiar Eros ao afirmar que Adler é menos profundo e mais racionalista que Freud. Arriscaríamos dizer que Adler (e a sua teoria) lhe parece mais superficial para Horney porque o impulso original permanece sendo Eros. A psicanálise, em geral, seguindo seu fundador, coloca Eros como origem dos impulsos humanos e toma a relação amorosa como modelo de funcionamento psíquico ideal. Kristeva (1988) e os lacanianos admitem que o que todos procuram é o amor, o que muda é o objeto. A psicologia analítica, porém, ao estudar culturas demonstra que existe diversas formas de lidar com Eros. (MELLO, 1991; JOHNSON, 1980).
Eros, ou melhor, a função Eros, é um deus que surge com diferentes roupagens em cada cultura. Personificado ou não, aparece em todas as mitologias. Para Junito Brandão (1988), Eros está longe de ser um deus poderoso que basta a si mesmo. Ele é antes uma energia, perpetuamente insatisfeita: “uma carência em busca de uma plenitude. Um sujeito em busca de objeto” (ibid, p.187). Ele se refere à cultura grega, berço de nossa cultura ocidental. O Eros indiano, Kãma-Deva, por sua vez, não tem aspecto tão infante. Talvez por ter a cultura hindu tanto apreço pelo amor e sexo, seu deus é um jovem “brilhante e habilidoso” (ZIMMER, 1991: 108). O que há, porém, em comum é que Kãma é primogênito, bem como possui projétil. (MELLO, 1991). Eros é um princípio cosmogônico (ELIADE, 1972) e cria engendrando a união de opostos. A libido sexual é uma força fundamental que impele essa “re-união”. Eros, porém ultrapassa o significado libidinal erótico. Eros seria o liame, patrocinador da sabedoria, não como sublimação da energia sexual, mas como energia original que faz o ser se aceitar, querer conhecer, e assim “re-criar” o mundo. Lembremos que só amo na mesma medida que conheço e me “des-velo”. A necessidade de reunir o que deveria se reencontrar, faz Eros realizar a coniunctions. A crença na androginia inicial é universal. Seja no banquete de Platão, seja no Gênesis, necessitam de um Eros para que renasçam.
Empédocles de Agrimento (495/-435 a.C.), como sabemos em textos de filosofia (cf. MONDOLFO, 1971), é um dos mais antigos filósofos gregos, e inclui Eros como princípio. É dele a afirmação de que o universo é a consequência do “interjogo” permanente e dinâmico de duas forças opostas e complementares que atuam sobre os elementos primordiais dos movimentos. Quando o Eros consegue preponderar, a expansão ganha e a harmonia é capaz de se instaurar.
Platão fez de Eros dos pontos centrais de sua obra. Ele surge como “( ... ) o mediador entre a sensibilidade e a compreensão pura das coisas que existem” (apud CIVITA, V. vol. I, 1973, p. 36). Para ele não só o pensar é valorizado, Eros, esse demônio (daimónion), ser parte Deus, parte humano, ou seja, um intermediário, como todos os semideuses. Especialmente Eros é esse ser capaz de fazer os seres aproximarem-se da totalidade, pois quando nos aproximamos do mundo (interno e externo), o descobrimos e assim nos recriamos.
Em pesquisas anteriores sobre os mitos de criação (MELLO, 1991) em várias civilizações constatamos que Erro Eros, o amor, personificado ou não na forma de um deus nos mitos de criação são uma constante e aparecem em todas as civilizações estudadas, ou seja, é uma constante ainda que se faça sentir de maneira mais sutil. No processo do vir a ser humano, é necessário o amor, como elemento de criatividade, como elemento de inspiração, como motivo para fazer alguma coisa acontecer. No processo de crescimento individual, há que haver amor a si próprio. Esse ponto é enfatizado, por exemplo, no Novo Testamento quando Cristo admite que devemos amar ao próprio como a nos mesmos. Esse amor é a condição fundamental para o crescimento, para o ser envolver-se com a sua própria vida, podendo criar essa vida, numa ampliação do que era antes. Quando existe a presença desse amor, existe um vetor, existe um Hermes, existe um psicopompo, uma direção para que se apanhe nas águas inertes, conteúdos que agora chegados a consciência, geram uma transformação e consequentemente uma ampliação.
Eros diferencia-se do sopro divino, pois surge após a primeira criação. Como a criança que ainda não diz “eu sou“ e está imersa no seu mundo auto–referente, o ser humano para viver plenamente, precisa de Eros, reconhecendo algo que o leve a desejar criar. E necessário alguma alternativa e fascínio, mesmo para o adulto que diz “eu sou “, perceber que ele estará sempre por se fazer, pois ele apenas “está “ e não “é“ algo definitivo.
Eros representa, em síntese, a necessidade de casamento do ser consigo próprio, a partir da aceitação de suas polaridades e limites, aceitando a realidade que se distingue do ideal absoluto. Assim é a força que deixará de ser esse menino alado que rouba o coração do homem, para se constituir um Eros adulto.
O Eros da Grécia, era essencialmente um menino, pois sua cultura desenvolveu o pensamento criativo de uma forma tão intensa que não reservou muita energia para essa outra polaridade. Como salienta Fromm (1982) quando aceitamos o conflito e a dessemelhança com uma atividade passiva pode-se chegar a ser o que se está sendo, o que se está sentindo, o que se pode dar... e o comprometer-se ao receber.
Assim, o ser conseguirá conviver com sua permanente incompletude, de um ser inacabado, mas que é um ser potencialmente inteiro, ainda que nunca totalmente um ser conhecido. E, assim, poderá aceitar que seja envolvido nessa teia que nos liga ao que se consegue amar. Ele, Eros, é esse pobre andarilho (como sua mãe Pênia), porém tem força, a coragem, a energia e o faro de caçador (de seu pai Poros)4, e gosto da vida, do belo e do bom, que Afrodite sua mãe em outra versão ou madrinha nesta, possui, e a busca da justiça e sentido de seu pai, Júpiter, em outra versão. Eros sendo filho de uma mortal e um Deus, atua em relação ao divino em nós (os arquétipos) e o mundo do vir e ser contextualizado, que precisa coexistir para termos sentido e quereremos estar sendo.
4 “Pênia significa pobreza e Poros, recurso” (CIVITA, V. vol. I, 1973, p. 36).
Como no mito platônico, os seres teriam sido criados totais, sem faltas redondos, duplos. Então só rolavam inertes, nada criavam. Os homens precisam buscar algo, as forças da natureza precisam se expressar, necessitam do transitório e mutável. Humano para existir. O ato é a própria força dessa potência que adquiriu luz: seja de que forma for (Pneuma, Eros) é necessário criarmos para não estarmos mortos, ainda respirando, ainda pensando que estamos dando – recebendo amor.
Eros é o grande motivador, o elemento ou a circunstância que permeia, facilita, mantém o estado de transformação, quase se poderia dizer que não pode existir transformação profunda sem amor. É preciso um ato muito grande de amor para consigo próprio, para um ser se desenvolver, para se tornar diferenciado. Esse amor de certa maneira está embutido em todas as mitologias, pois todo ato de partição tem pressuposto o ideal amoroso. Quando na Bíblia existe a situação referenciada de que "parirás com dor", isso simboliza que a aquisição da consciência é em si um ato doloroso. E é justamente em função disso que o motivo por que se pode submeter a essa perda do universo (interior/exterior) que se conhece, a essa dor, é o motivo amoroso, o melhor dos motivos. É o mais edificante, é o que mais reúne, é o que mais agrega.
Resumindo, podemos admitir que o amor é uma fonte universal de atuação, de eterna busca, que justifica a união dos seres, e produz assim “... linhas de descendências que acabava por ligar todos os imortais e todos os mortais, e mesmo os deuses ao homens“ (CIVITA, V. vol. I, 1973, p. 34).
Para a psicologia analítica o significado psíquico de Eros é ser uma estrutura universal, virtual, um arquétipo. O nosso deus do amor é o arquétipo que se revela empiricamente como a força do destino por excelência, quer se apresente como concupiscência ou na sua faceta espiritual (JUNG, 1987). Possante força motriz das coisas humanas é considerada divina. Porém, Eros ocupa uma posição singular. Os deuses são sempre confrontados com o homem e dele expressamente diferenciados. O amor, contudo, é comum a ambos. É próprio do homem poder criar amor, mas como força absoluta do destino faz do homem receptáculo, às vezes vítima. Psicologicamente isso significa que em parte a libido surge do destino e em arte é possível dispor dela e sofisticar nossa forma de amar.
Para os mitos de criação do universo de todas as culturas, e para a Psicologia de Jung necessitamos de duas formas de criar. O relacionamento amoroso parece necessitar desse duplo sentido. Saber unir, mas com diferenciação. Outro arquétipo poderoso é o Pneuma ou sopro divino. Em termos psicológicos isto significa que há uma energia que diferencia, e a criação não ocorre só na união, mas quando um todo se divide em duas partes. Na vida, e nos mitos, é necessário saber manter separado como manter unido.
O pensamento criativo, Pneuma (MELLO, 1991), pode ser traduzido na sua forma originária de ar em movimento, ou seja, vento. O caráter pneumático é sinônimo de “espírito” e traz a noção do que diferencia, distingue ou separa, como é concebido deste a antiguidade ( JUNG, 1980 ).
Vários sinônimos foram empregados para descrever esse elemento aéreo ou espiritual, capaz de romper com a imobilidade e infinidade anterior ao início. Podemos recordar o “tufão” ou “sopro” de Anaxágoras (MONDOLFO, 1971; JUNG, 1986) que o indicou como instrumento que, a partir de si mesmo, transforma o mundo, construindo-o.
Os alquimistas, como afirmam inúmeros autores (HUTIN, 1979 e 1988; MERINO, 1981; VON FRANZ, 1985; JUNG, 1982) Jung (1978), por sua vez afirmaram que o pneuma, a “anima mundi“, o demiurgo ou Espírito Divino estariam em potencial dentro da matéria. Os alquimistas gregos, por exemplo, formularam a hipótese de que a pedra filosofal encerrava o espírito, pedra que é concebida como “prima matéria”. Caos , “hyli” , massa confusa.
Se olharmos para a mitologia grega, observaremos Hermes, representando o pneuma, executando os misteres de um psicopompo (um mensageiro que transforma), realizando aquilo que no psiquismo humano é feito, muitas vezes, segundo a vontade do ego. Assim do inconsciente profundo, dos arquétipos, vêm novos conteúdos para a consciência, e assim ampliada ela novamente requisita outros conteúdos, ainda que muitas vezes ocorra pressão espontânea do inconsciente, para que novos conteúdos ganhem luz.
Podemos observar, nos mitos, que esse Pneuma aparece com diferentes roupagens, guardando, porém, o caráter volátil separador e fecundo em si próprio, contrapondo-se ao princípio de Eros que é uma força de representação feminina, apreendendo a criação a partir da união (“reunião”) de elementos.
Dentro da concepção unitária de polaridades que se anulam e se complementam, Eros possui sua contrapartida. O contrário de amor é o poder, e não o ódio ou Pneuma ou a distância e separação necessária.
O poder que aparece em pequenas manobras, nas tentativas de controlar o outro (a nós mesmos) e os sentimentos interpessoais. Quando um se estabelece, o outro se esvai. Como coloca Jung (1978), quando um está na consciência, o outro domina no inconsciente. O autor localiza na própria história do estudo das neuroses a mesma compensação: a teoria de Freud representa Eros e a de Adler, o poder, a potência humana, que eu associaria a este Pneuma ou “pensamento criativo”. E será a posição de Eros em cada autor que trará diferentes conceituações dos sentimentos amorosos e consequentemente das posições dos sujeitos frente às relações afetivas.
PAIXÃO E/OU AMOR
Freud usa os termos “estar apaixonado” (1973) e “amar” (1973) indiscriminadamente. Para o autor, o investimento dos sentimentos se dá pela sublimação parcial dos desejos que surgem das pulsões libidinais. O estar amando “[...] nada mais é do que uma catexia de objeto por parte dos instintos sexuais com vistas a uma satisfação diretamente sexual” (1973: 141). Após o “romance familiar” engendrado na trama edípica, o recalque se estabelece levando a criança a renunciar seu objeto de amor. Afeto é o que ela vai sentir depois disso, em alguma medida preservada no inconsciente. Essa é a origem das duas correntes, cuja união é necessária para assegurar um comportamento normal: a corrente sexual e afetiva. Apenas um pequeno número de pessoas não vão ter dificuldades de amar e desejar ao mesmo tempo, confluindo para um mesmo objeto. Para a psicanálise freudiana as primeiras escolhas são narcísicas, e esses tipos são exercidos a partir do modelo de relação do indivíduo consigo próprio ou da outra pessoa como representante do sujeito em algum aspecto. A escolha analítica ou de apoio que tem por base as fantasias parentais enquanto essas asseguram à criança alimento, cuidados e proteção. Resumidamente, pode-se dizer que é “[...] absolutamente necessário para a nossa vida mental ultrapassar os limites do narcisismo e ligar libido aos objetos” (FREUD, 1973, p.191). Em síntese, a postura freudiana está permeada por duas questões básicas: o dilema entre escolhas primárias e narcísicas como característica pré-genitais que inclui tendências atuais ou escolhas amadurecidas que tendem a “triangular” os vínculos e a genitalizá-los, como resume Kusnetzoff (1983) e a vinculação entre o afetivo e o sexual. Para a psicanálise lacaniana não é por ser narcísico que o sujeito é incapaz de amar e de se relacionar, mas pelo autoerotismo que não permite o sentimento “amoroso” fluir. Será a organização autoerótica que não tem o outro como imagem e não permite assim o Eros surgir. Sob o ponto de vista dos lacanianos narciso não é um sintoma perverso: é o enredo de toda história de amor. Plotino afirma (apud KRISTEVA. 1988, p. 16), que o reflexo que “[...] só remete a si mesmo - é olhar inteiro - e a falta de narciso consiste em ignorar que ele é a origem de sua sombra. Ou se ignorar como origem”. Logo, a significação mórbida, narcótica de narciso não é mais do que um risco de vida, necessário.
Os culturalistas Fromm (1982) e Horney (1956) diferenciam amor e paixão. Para Fromm (ibid) a paixão é identificada com a carência. Essa maneira de sentir e estar a dois, tem como exemplo modelar a relação entre a mãe grávida e o feto. Um é tudo o que o outro necessita e apesar dos dois corpos independentes, vive-se o espaço psíquico como uma unidade. Observa-se aqui poder, um passivo e outro ativo. Um dos indivíduos domina, expande-se e valoriza-se, incorporando a outra pessoa que é parcela de grandeza, da força do primeiro: uma relação sadomasoquista. O autor (1982) localiza nesse “objeto adequado”, as qualidades culturais procuradas no “mercado amoroso”. Fromm advoga que essa situação não fala de intensidade, mas antes prova apenas o grau da anterior solidão do sujeito. Como se pode observar, Fromm retira Eros da paixão, e não diferencia este tipo de relação, da relação neurótica sadomasoquista. Não seria um julgamento apressado de condenação desses sentimento como não genuínos? Caso não houvesse nenhuma especificidade (pessoal do sujeito) ao se apaixonar, não seria de se esperar uma sucessão indiscriminada de objetos amorosos? Se existem escolhas específicas, mesmo em se tratando de paixão, que outros quesitos existiriam além de uma boa cotação no “mercado amoroso”? Ou seja, o princípio criativo não estaria lá indicando algo a ser revelado? O próprio Fromm (1975) admite que as paixões não são estruturas simplórias. Descarta a hipótese de reduzi-las à história individual do sujeito. Confere-lhes a força de impulsionar o homem para a busca de sentido e de intensidade, tentativa de dar à pessoa alguma transcendência diante de uma realidade meramente reprodutiva.
O ponto, porém, mais problemático parece ser a situação da exclusividade do amor ou paixão. Aprender a amar é um processo. Pois se amamos na exata medida do amor próprio, o que dizer dos que estão no meio do aprendizado, em especial, em relacionamentos longos, com alternância dos dois sentimentos? Horney nem chega a admitir a paixão. Dada a dificuldade de definir amor, Horney enumera o que não é amor. Contrapõe, então, as diferentes posturas que observou como terapeuta: quando o sentimento afetuoso é primário, na outra, o sentimento básico é recuperar a segurança. O amor e o carinho genuíno dedicado à alguém pode não ter o efeito esperado. O medo de ter e perder, o medo da dependência, de perder o controle, de sofrer, são realmente queixas comuns nos consultórios. Poder-se-ia questionar aqui se essa “ameaça” amorosa não seria uma chance, ainda que remota, para o sujeito desafiar-se: numa proposta de busca de encontrar alteridade, totalidade? Para tanto, levar-se-ia em consideração fatores como a força de Eros nessa relação específica, a estruturação neurótica do indivíduo e sua possibilidade de livre-arbítrio.
As cadeias repetitivas ocorrem, sem dúvida, de forma mais constante (linear e previsível) do que as quebras de padrão. Somente a análise é capaz de recuperar os “neuróticos de afeto”? As possibilidades de solução da autora não incluem maiores reflexões sobre o assunto. É certo que (HORNEY, 1956) é de se esperar pouca (nenhuma?) chance para o indivíduo em função de sua desconfiança inicial. É esclarecedora no entanto a afirmativa de Horney (ibid.) que as demonstrações de afeto são incompreensíveis ou obedecem (para os neuróticos) a interesses ocultos. Vemos essa combinação-contradição: preciso desesperadamente de afeto - não posso aceitá-lo é a chave para entender a fórmula de Horney, que diferencia o amor da somente necessidade amorosa.
Para a psicologia analítica essa noção de amor que se recebe só é aceita quando o indivíduo já se percebe como uma totalidade múltipla (self) capaz de ser e gerar amor. Se o desamor marca a relação do sujeito com ele mesmo, esse indivíduo não se sente digno de ser amado (é carente do seu self), logo: o amado mente para mim, ou também não serve para ser amado. Se, porém, percebo sinceridade no outro e o acho digno de amor: fujo ou o faço sofrer.
Jung diferencia os conceitos de amor e paixão. Voltando às origens das palavras, segundo a tradição junguiana, buscamos em Bent Paroli a raiz da palavra Amor. Origem egípcia e não latina. Como desenvolve Affonso Romano de Sant’Anna, amor nada tem a ver com o “ama” grego, embora este signifique “juntos”. Podemos ampliar esse significado com o “Eros” grego, mas a raiz dessa palavra indica “atividade”. O vocabulário egípcio, como continua Sant’Anna, traz a raiz MR, MR J. “Parece estranho. Os egípcios não usavam vogal. Mas eles escreviam assim e na hora de pronunciar, a vogal aparecia. O fato é que MR se pronuncia “amer”, “amor”. Escrita com hieróglifos a palavra MR era representada por uma espécie de pá ou de cavadeira de camponês abrindo a terra. Há um sentimento agrário de fecundação cósmica. Amor, então, era como o ato de cultivar a terra. [...] Mas o fato de amar, mais produtivo e fecundante, implica a ação, o investimento, o semear cavando e movendo a terra. E para grafar a palavra amor, os egípcios usavam seu alfabeto especial e não o popular, porque sabiam também que o amor é coisa para os iniciados”. (SANT’ANNA, 1975, p.10).
O amor, então, se cultiva trabalhando a semente da própria ação de amar, e, amar se aprende amando. É preciso iniciar voltando-se à terra mãe, terra sagrada: corpo e matéria. Amar é “decidir com acerto e precisão a melhor direção” Beto Guedes: O medo de amar.
Estudando a história da palavra paixão encontramos “[...] qualquer apetite, e afeto imoderado, e violento: [...]. Doença que se padece. Flos Sanst.V. de S. Brás, os que padecem alguma paixão da garganta. F. Mendes. “paixão de rins”(SILVA, 1813 )
Vale lembrar que a garganta se refere ao chacra do poder, e liga o corpo (lugar da matéria e desejo), lugar de Eros e de união com a cabeça, símbolo de discriminação racional, Logos. O poder do Verbo nos aponta também para a garganta como o local da palavra - comunicação que revela e oculta. Os rins, por sua vez, simbolizam o filtro da purificação, do que afetou, dos afetos. Representante de um sistema também de comunicação das nossas águas, doces e amargas, afetivas. “No interior do corpo [...], os rins representam o âmbito da parceria” (DETHLEFSEN, T & DAHKE, R, s/d: 167).
Jung (1967) explicita aspecto característico da diferença entre paixão e amor. A paixão seria um ato passivo de sentir que se caracteriza pelo sujeito ser submetido à uma participação, a um determinado julgamento. O amor, ao contrário, seria um ato, uma atividade, que parte do sujeito, tal como se expressa no verbo “amar”, logo ação, em contraste com o estar apaixonado, um sentir passivo como a própria linguagem o revela.
A paixão é um complexo de atitudes involuntárias. O “amor cortês” (ROUGEMONT, 1956) que no século passado envolveu uma tonalidade espiritual, hoje tende ao luciférico, mas envolve muitas vezes sua face mais espiritualizada (JUNG, 1978). Porém, como ponto comum o fato de serem muito pouco humanos. Constituem, na verdade, uma crucificação: céus e infernos os reúnem. Entramos no reino mítico que envolve mais do que facetas de anima ou animus, mas toda a totalidade é chamada à arena com toda a sombra na sua definição mais ampla: o desconhecido. O mistério que une os homens aos deuses: nós mortais, sexuais, perenes (ELIADE, 1972).
Como coloca Jung (1978), o desejo apaixonado tem dois lados: é a força que tudo exalta, e sob determinadas circunstâncias, tudo destrói. É compreensível assim que um desejo ardente já venha em si acompanhado de medo. O ponto básico é que o medo não deve ser maior que a vida. Sabemos, porém que o destino encerra perigos desconhecidos, como coloca Jung (ibid). Quem renuncia à façanha de viver, precisa sufocar dentro de si mesmo o desejo de fazê-lo, portanto, comete uma espécie de suicídio parcial. Isto explica as fantasias de morte que frequentemente acompanham a renúncia ao desejo. No mito de Tristão e Isolda, estudado pelo analista junguiano Johnson (1980), vê-se que esse tipo de “amor” tem a mesma qualidade de poção de amor que os protagonistas tomam. A mistura do natural e sobrenatural, ervas e magia são a origem do líquido. A erva é essa planta de caule frágil, que morre logo que frutifica. Inevitável, contudo, é a invasão de conteúdos inconscientes, e de qualquer forma, a transformação do eu, a paixão há de incluir uma morte: a do ego. Por não ter história construída, os apaixonados percebem no outro uma realidade que é distorcida através de lentes próprias. Porém, essa não é uma visão qualquer, mas fala de uma outra realidade: a de sua própria subjetividade. E ainda que o outro seja o objeto adequado para pintarmos nossa emoção, nesse caleidoscópio sobram todas as cores que são nossas. Segundo Fernando Pessoa “Tu és a tela irreal em que erra em cor a minha arte”(s/d: 25). A essência da poção de amor, da paixão é projeção. O fenômeno de projeção se fundamenta na identidade arcaica entre sujeito e objeto. A projeção é definida por Jung como uma transferência inconsciente, isto é “[...] imprevisível e involuntária de fato psíquico e subjetivo que não existe ou existe muito pouco” (VON FRANZ, 1992, p. 10). A comoção repentina da paixão amorosa traz a tona o simbolismo do projétil (de Eros, de Kãma-Deva). Interiormente a pessoa se sente invadida por uma inquietação fervorosa e por fantasias, e ao mesmo tempo, é como se a vida escoasse para o outro (Ibid.) Projeto, pois como conhecer sem projetar? (VON FRANZ, 1992 ). As projeções trazem a funcionalidade de servirem como pontes facilitando a passagem de libido do desconhecido - inconsciente - para o conhecido - consciência. A retirada, então das projeções é o veículo para descobertas. Ao contrário do que se pode pensar, a retirada de projeções não elimina o relacionamento entre as pessoas. Um relacionamento autêntico pode surgir, baseado não mais nas expectativas, humores e ilusões do eu.
O amor distingue-se da paixão, então, não por sua ausência-presença. Sua particularidade é ser influenciado pelo fator reflexão, envolvendo síntese entre consciência e inconsciente. O sujeito participa ativamente do processo amoroso, não vivenciando seus sentimentos como uma força coercitiva. A presença de Eros é condição necessária, porém não suficiente. A energia só é produzida a partir da tensão de contrários mais que isso, a libido (energia psíquica em geral) tem o hábito de escolher ela própria para onde deseja (precisa?) fluir. Resta ao ser humano permitir e facilitar que o fluxo aconteça, suportando os conflitos que seguramente aparecerão. A definição de Fromm (1982) do “amor amadurecido” segue um critério similar na psicologia analítica. O amor envolve aprendizagem e consciência. Como no cerce da paixão está a projeção, a consciência não existe. Para Jung (1981) o relacionamento psíquico pressupõe a existência da consciência. Logo, a relação que existe é proporcional à consciência que ela contém. A força de outros envolvimentos não perde sua importância. Somente o amor é uma relação eu-tu, de dois indivíduos.
A condição básica da existência do amor humano, dentro desta concepção, é assumir Eros e renunciar o poder. O poder nas relações é algo bem mais corriqueiro do que parece a princípio. O poder é a arma e a armadura, a tentativa de controle interior e exterior do homem. Amar só se inicia, então, com um desarmamento. Quanto mais desarmado diante da vida e mais fiel às suas necessidades interiores estiver o sujeito, mais próximo de si e do outro estará. A aproximação, seja de peles ou de intimidades, não é possível se há algo entre elas. Hillman aponta que devemos nos permitir as mais sombrias paixões sangrentas (1990: 168), evitando reprimir a sexualidade por mais grosseira que ela seja (SANFORD, 1986). Para Eros renascer em cada indivíduo é necessário uma espécie de iniciação. Antes disso o amor não passa de mero desejo. O desejo, terá que ser abandonado (HARDING, 1985). Essa assertiva acima encontra no Tantra-Yoga uma explicação mais clara. É a aquisição do desapego, na verdade, desejo e poder são transmutados através de apreciação da sexualidade e do instinto como expressões da “força de vida divina” (ibid : 207), de Eros. Trata-se de uma assimilação das polaridades do homem em uma síntese maior, globalizante. A pessoa torna-se “um-em-si-mesmo”, dono e senhor dos seus sentimentos, no sentido de poder vivê-los independente de ganhos exteriores, incluindo ter ou não o objeto amado, podendo, porém dar e receber amor.
O amor como força nada desprezível é também observada nas religiões, fato este percebido por todas as linhas teóricas levantadas. Utilizando a religião à guisa de esclarecimento do amor humano versus o Eros religioso, Jung (1987) demonstra a importância do amor para a comunidade cristã. A fraternidade parece ser a condição essencial para a redenção, o estado almejado. A primeira Epístola de São João é semelhante: “Quem ama o seu irmão, permanece na luz...” (1 JO 2, 105, apud Jung, 1986, p. 58 ). “Ninguém jamais viu a Deus, mas se nos amarmos mutuamente Deus permanece em nós...”. O fato de existir nos preceitos de Epístola de São Tiago: “confessai, pois, nossos pecados uns aos outros” (Ti 5, 16, ibid). Poderíamos supor que o amor é o próprio Deus. O amor é uma função de relacionamento, e ao mesmo tempo, estado psíquico carregado de emoção que coincide com a imagem de Deus (Jung, 1987).
A diferença básica da psicanálise e da psicologia junguiana sobre o amor é epistemológica, é que ao ser dualista a psicanálise traz um confronto de forças inevitáveis, onde o reino do desejo, da pulsão, traz a angústia da falta primeira, e quanto mais parecido com o objeto familiar mais certeza esse objeto amoroso nos traz de sua substituição. Esse lugar é sem lei, sem ordem, do vazio como diz Chico Buarque:
“O que será? (À flor da terra)
O que será que será [...]
Que com certeza está na natureza [...]
O que não tem certeza e nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho
(do filme Dona Flor e seus dois maridos) de Bruno Barreto”
Para a psicanálise a natureza é o avesso do cultural e o homem só se constitui quando rompe com a animalidade. Para a psicologia analítica a descoberta básica é que a falta é a falta do si-mesmo. As determinações dependem do indeterminado. Pesquisas da Cosmologia (NOVELLO, 1988), e estudos transdisciplinares em comunicação (SODRÉ, 1994) apontam na direção da concepção de Jung, sobre a energia física e psíquica como sendo duas faces de uma mesma realidade (MELLO, 1996). Admite-se que o vazio anterior, como grau zero de representação já aparecia na filosofia grega pré-socrática (SODRÉ, op. cit.), mas é com Jung (EDINGER, 1990) que na psicologia surge o homem não como um vazio a ser somente construído e constituído, mas, a verdadeira possibilidade de admitirmos singularidades e subjetividades. A noção de espaço organizador-orientador (Self) referido a uma totalidade anterior (virtualidade) é um vazio pleno, como coloca M. Sodré: “[...] O indeterminado era, assim um vazio ou um “nada positivo” ao passo que o Ocidente só tem concebido o nada como negativo, gerador de força determinativa” (SODRÉ, 1994, p. 80).
Por essa particularidade, a psicologia analítica assume a possibilidade de uma combinação única (impressão digital) energética individual para cada ser a partir do vazio arquetípico compartilhado. O encontro amoroso-apaixonado traz aqui a sua “re-sacralização”: o indizível e imponderável surgem nessa possibilidade humana de se entender e se construir amoroso. O mistério do amor remonta também o milagre do sentido da existência, para além da angústia, apontando para nossa carência de nós mesmos e para a necessidade de encontro e desencontro no caminhar.
Para Jung as escolhas fazem parte do mistério, por uma lado e também da “química” do inconsciente. As primeiras escolhas, ao contrário da psicanálise, relacionam-se justamente a uma repetição dos modelos familiares e sociais. Porém, as escolhas singulares referem-se à busca do si mesmo que é síntese da unidade última do ser, logo anterior a todos os outros. Ela reedita no amadurecer do indivíduo o incesto consigo próprio, já que só podemos chegar a conhecer o tu se soubermos do nosso espaço interior: do eu. O ponto importante a ser lembrado é que a relação eu-tu é tão importante quanto a relação eu-eu na medida em que são indissociáveis de um encontro do sujeito através do outro e do outro após o indivíduo saber de si. O incesto é porém passagem inevitável. Já que trago um mundo único no inconsciente, preciso unir e realizar o encontro do sujeito com o seu microcosmo. Assim, a escolha amorosa é o fio de Ariadne dos encontros e desencontros do ser. O mistério cabe aqui porque o “escolhido” pelo destino (O que a vida nos apresenta) que nos traz de volta. Esse processo nos oferece a possibilidade de ao ser um, constituir uma relação com outra pessoa.
Só inexiste Eros quando o outro não se constitui nem como passagem para auto-conhecimento, mas está a serviço da manutenção de contenções psíquicas do fluxo da vida, do devir: logo, “ganchos” psicológicos que significam controle, em síntese, poder. O sentir e o relacionamento podem até parecer destrutivos, mas em alguma instância se for fonte energética geradora de tensão, ruptura e posterior unidade, justifica-se por si mesmo. Afinal o homem deve buscar só prazer ou cumprir seu quinhão de conscientização? Eros é visto assim como um polo de energia capaz de transformar energia em trabalho, ou ainda força capaz de romper com a inércia: iniciar ou parar movimentos.
A psicanálise admite que a criação do ser se dá quando o pai entra em cena, o simbólico, o corte e a ruptura de uma unidade, surge o Édipo, o que separa e como tal constitui o indivíduo. Para a psicologia analítica o lugar da mãe, da terra, também cria: cria não através do corte, mas cria de forma introvertida, por dentro. O indivíduo por já trazer algo, pode parir dentro de si mesmo, a partir de si mesmo, do seu próprio útero. No confronto consciência e inconsciente do indivíduo surge a diferença. Existe então duas formas de criação: uma onde a unidade se divide com uma espécie de corte no meio que a separa em dois e uma outra forma de criação onde dois se unem e ao se misturarem criam o novo: tese, antítese e síntese. Sendo Yang “o que recebemos do grande vazio, idêntico pela forma ao começo primeiro”. (JUNG, 1984, p. 65). O princípio
Yin, pelo contrário, é “a força do pesado e do turvo, presa ao coração corporal, carnal”. Sing é a essência, consciência criativa, espírito: nosso Pneuma é que dá a medida do ser individual ligado à totalidade do cosmos. Ming é destino, fatalidade como Eros, que é a vida, é o “[...] vital, é o desejo.” (ibid.). Eros é relacionamento; Logos é discriminação e desapego. Unem-se assim o matriarcado e o patriarcado como duas possibilidades opostas e complementares para que a união-totalidade se viabilize. Essa é a diferença entre a psicologia analítica e a psicanálise: para a última a unidade permite a convivência tempestuosa das polaridades que se contrapõem e se complementam no mesmo indivíduo e no mesmo casal: para a primeira há que ser dualidade, exclusão e diferença. (VON FRANZ, 1992, p. 10). Jung é o único que rompe com a hegemonia de Eros admitindo que a psicologia de Adler possui face contrária deste: o poder, poder como potência podendo ser entendido como Pneuma, o poder criativo para criar ou Poder sobre o outro que é somente o destruir. Ao fazer isso, utiliza o próprio princípio Eros na psicologia: une as polaridades.
Nos relacionamentos amorosos também podemos imaginar a necessidade do que a Psicologia Junguiana chamaria de uma união com diferenciação, uma “coniunction superior”. Isto inclui os processos de unir e separar, para unir de novo com melhor qualidade de vida no relacionamento, tema para trabalho posterior.
Estes dois modelos também podem ser observados em termos coletivos. Vivemos em uma cultura matriarcal (BYINGTON, 1996) em descompasso com as teses empoladas e seu academicismo narcísico e patriarcal muito unilateral. Na própria psicologia se questiona se falamos de uma área ou de várias psicologias: dispersão versus integração. Urge confrontarmos os modelos vigentes os saberes sobre o homem. Ao assumir Eros com Pneuma, poderíamos perceber a riqueza das teorias psicológicas, e discutir com mais respeito se há ou não apenas uma Psicologia, com certeza múltipla, mas uma possível totalidade como objeto de estudo? Necessitamos de profissionais que ousem circular pelas teorias psicológicas, questionando uma atitude de exclusão teórica. Lembremos que ao afirmar que uma teoria é melhor do que outra, estamos afirmando que um grupo de ser humanos é mais eleito do que outro, já que todas as teorias hoje já admitem que não há seres humanos eleitos, nem uma linearidade absoluta em termos de evolução teórica em Psicologia. Ao nos identificarmos com uma teoria, precisamos estar percebendo que nossa escolha nos fez perder uma parte da totalidade. Situação inevitável, mas que deve ser acompanhada de humildade existencial. O confronto com essa situação coletiva parece que pode ser iniciado por nós, na e pela nossa ampla teoria junguiana que, sem dúvida, já nasceu com vocação transdisciplinar.
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