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Átis e Cibele - Quando o amor não pode existir e tampouco inexistir.

  • 12 de set. de 2022
  • 16 min de leitura

Atualizado: 6 de fev. de 2024


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Em Símbolos de Transformação, escrito em 1912, Jung fala dos aspectos dramáticos da origem da consciência. Trata-se da luta do ego para se emancipar do inconsciente e manter a consciência frente aos perigos de ser novamente tragado por quem o gerou. Tais forças em confronto estão contidas no mito de Átis e Cibele, comentado por Jung em Símbolos de Transformação e constituem a dinâmica central da matéria prima dos alquimistas. Schwartz-Salant sintetiza o mito:


Cibele é a Grande Mãe dos deuses e dos homens e Átis é tanto seu filho quanto o amante. Seu relacionamento intensamente fundido e apaixonado é caracterizado não apenas por um profundo amor e ciúme, mas também vingança, traição e loucura. Cibele e Átis são unidos por um amor selvagem e apaixonado. Porém, uma força igualmente poderosa também os obriga a se separar, uma força que se expressa nos vários modos pelos quais Átis tenta libertar-se da relação mãe/amante. Nas muitas variantes da história, Átis geralmente morre – desnecessariamente, é o que parece, o que o diferencia de outros deuses que morrem, como, por exemplo, Dionísio - e não surge qualquer resolução do conflito elementar travado por Cibele e Átis. Átis é, às vezes, morto em uma caçada, outras enforcado em uma árvore ou, então, fica louco. E Átis, ou alguém associado a ele, é usualmente castrado. Os sacrifícios de castração, de fato, são marcas registradas dos festivais orgiásticos dedicados a Cibele nos tempos antigos. (Salant, 1998, p. 125).


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O mito personifica e descreve os paradoxos da relação ego/Si-mesmo (consciência/inconsciente) desde sua origem. A díade Átis e Cibele expressa um amor que não pode existir e, tampouco, inexistir. O ego deve lutar pela emancipação e manutenção da consciência sem romper o contato com o inconsciente e com o Si-mesmo, berço de seu nascimento e fonte contínua de alimentação. A maneira como é feita esta separação traz conseqüências importantes para o equilíbrio psíquico. Se muito radical, a cisão decorrente leva ao empobrecimento e à estagnação do ego e, se não realizada, acarreta seu afogamento e destruição. O mito de Átis e Cibele explora as qualidades da prima materia em seus movimentos de fusão e separação, bem como se refere aos assuntos que todos enfrentamos individualmente em nossas interações com os demais e, por outro lado, documenta em essência o nível de desenvolvimento com o qual a humanidade até hoje lida. Ele apresenta o retrato das separações trágicas e mal sucedidas, assim como os estados trágicos de fusão ou ligação... Um homem ou uma mulher nunca se separam da Grande Deusa sem a integração de seus lados sombrios. No entanto, esta sombra, especialmente “quando envolve características narcisistas, como raiva incontrolável e sadismo... pode ser usada mais para suprimir do que para integrar sua existência mágica e ctônica”. (Salant, pg. 126).


Salant chama a atenção para o modo como a solução heróica lidou com as forças de fusão e separação, envolvendo simbolicamente a castração e a morte violenta para rejeitar na consciência os aspectos inconscientes vistos como perigosos. Tal atitude, ainda que necessária, gerou sombra, ressentimento, raiva, sadismo e desejos de vingança da parte excluída, ou seja, da Grande Deusa. Agindo contra o feminino do inconsciente, o ego heróico optou por uma solução unilateral e mental, ao mesmo tempo masculina e narcisista, deixando na sombra importantes facetas de Eros, como a paixão e a loucura. O opus alquímico representa uma alternativa para lidar com estes lados ameaçadores da experiência amorosa e da união, propiciando refazê-las através de sucessivas transformações ou seqüências de uniões, mortes e renascimentos. No entanto, trata-se agora de um sacrifício do ego, implicando a morte gradual de suas defesas para dar lugar à totalidade do Si-mesmo.

A alquimia refere-se ao mistério e à importância da vida ctônica, não pela heróica superação dela, mas pelo mistério central da união. Assim, um entendimento do mito de Átis e Cibele tem um papel vital que se refere a este mistério central da união. Como sabiam os alquimistas, qualquer estado de união é seguido pela nigredo. A grande magia que a alquimia envolve é que as seqüências de união e morte são o processo fundamental em que a matéria prima é refinada em um Si-mesmo incorporado, a lápis (Idem).


Este Si-mesmo incorporado aponta para a integração das forças inconscientes que foram excluídas pelo ego heróico. Jung diz que os conteúdos do inconsciente podem ser considerados por meio de uma escala que vai do instinto ao arquétipo, caracterizando,

respectivamente, o inconsciente somático e o psíquico. O inconsciente somático expressa-se pelas sensações corporais e emoções que escapam à percepção ordenada pelo tempo e pelo espaço. No extremo oposto da escala, o inconsciente psíquico expressa-se por imagens, padrões, causalidade, significados e história. As forças inconscientes sacrificadas pelo ego heróico e pela consciência solar pertencem ao inconsciente somático em geral e também ao aspecto imaginal do inconsciente psíquico cuja elaboração resultaria na criação de um Si-mesmo espiritual e incorporado.


0utra versão do mito trazida por Salant apresenta um quadro mais completo das forças que vão dar no conflito de fusão e separação entre a Deusa e seu filho amante. Como todo candidato a herói, Átis nasce de um modo miraculoso.


Tomado pela paixão, Júpiter aproxima-se do Monte Agdus, que, na verdade, é Réia (Cibele). Ela, porém, rejeita-o e, na tentativa resultante, ele ejacula gotas de seu esperma na montanha. A montanha concebe do esperma divino e nasce uma criatura terrível e andrógina chamada Agdistis. Este hermafrodita representa um perigo tanto para os deuses como para os humanos, porque pode reproduzir-se sem a necessidade de outros; portanto, os deuses devem agir. Eles rejeitam um assassinato aberto e invocam a cooperação de Dionísio. Como sabem o lugar onde se banha Agdistis, pedem a Dionísio que ponha vinho na água da fonte. Quando a criatura estava dormindo, Dionísio, sóbrio, aproxima-se sorrateiramente e amarra os genitais de Agdistis com uma corda forte e grossa e prende-a a uma árvore. Ao acordar, Agdistis arranca de si aquilo que o tornava um homem.


De seu sangue, brota uma árvore. Um dia, Nana, a filha do rei, passeia por ali e fica fascinada pela beleza da árvore frutífera. Apanha umas frutas e coloca-as em seu colo. Subitamente uma das frutas desaparece e Nana descobre-se grávida. Seu pai, Sangarios (que também é o nome de um rio frígio) quer matar a filha para evitar a desgraça. No entanto, os deuses interferem e fazem Átis nascer prematuramente. A criança é abandonada e alimentada por uma cabra, crescendo graças aos cuidados de pastores. Torna-se um pastor atraente a cujos encantos a própria Mãe dos Deuses não consegue resistir. (Idem).


Esta versão do mito explicita os aspectos perigosos e ameaçadores que antecedem e justificam as restrições que foram dar na elaboração heróica do ego. Segundo Salant, a paixão desenfreada de Júpiter leva a uma estrutura destrutiva de Si-mesmo, o hermafrodita Agdistis que é, na realidade, uma forma de Cibele. O resultado é uma fusão total e impeditiva de quaisquer relações objetais. Não há meio-termo, pois uma paixão de tal natureza leva à concretização de afetos, com enfraquecimento e negação de Eros. Não existe relação simbólica entre os parceiros, mas apenas instinto e compulsão. O espaço intermediário e espiritual que permite a troca simbólica está ausente. Os alquimistas falam desse espaço como o “vento escondido”, ou falam de “fazer ouro com o próprio ouro”. Ouro, no caso, significa espírito. Todavia, eles não se referem apenas ao espírito-mental e racional da consciência solar, aquele espírito que constitui e mantém as defesas do ego. Trata-se, principalmente, do espírito da consciência lunar que dá origem ao Si-mesmo espiritual. Para os alquimistas nada é ouro sem que antes tenha sido prata.


O mito de Átis e Cibele expressa a dificuldade da consciência para lidar com a paixão e a loucura e esta dificuldade é tal que a solução heróica transformou-as em desejos inconscientes. Elas não puderam ser vividas conscientemente, pois através da perspectiva do ego, levariam à destruição. Salant sugere que isto aconteceu em função do meio simbólico utilizado para elaborá-las, ou seja, o padrão arquetípico do herói solar, um padrão que vivencia os opostos de forma muito separadora. Fusão e separação são vistas como experiências radicais, onde há apenas duas saídas: fundir-se com o inconsciente e ser destruído ou separar-se dele por um ato violento de repressão e sobreviver. O ego heróico optou pela sobrevivência, mas excluiu a possibilidade de elaborar paixão e loucura na consciência. Além da Grande Deusa, Dionísio é parte dessas forças bloqueadas e aparece como elemento de intermediação entre as duas fases do mito. Desenvolver a consciência lunar e integrar as forças dionisíacas e imaginais que o ego sente como loucura e desestruturação é fundamental para se lidar depois com a paixão pela Grande Deusa.


A conexão entre o mito e a loucura é parte central para qualquer desenvolvimento que busca a separação e o respeito pela deusa. Simbolicamente falando, deve-se morrer para crescer de um modo que se possa lidar com a paixão da união e as reações potencialmente devastadoras que se seguem... Este mistério da nigredo está bem distante da consciência patriarcal que valoriza a solidez, a estabilidade, a constância e a durabilidade. Para a maioria das pessoas é uma longa e árdua passagem até que comecem a apreciar a magia deste ‘outro caminho’, o caminho da união e da morte. (Idem, pg. 127-128).


Analogamente à fase Júpiter-Réia do mito de Átis e Cibele, as dez primeiras pranchas do Rosarium Philosophorum usadas por Jung em Psicologia da Transferência também concebem um ser hermafrodita como resultado da coniunctio. Ele expressa o amálgama entre os aspectos masculinos e femininos de duas formas possíveis de consciência: a solar e a lunar. Este amálgama segue-se à transformação gradual da estrutura quaternária que envolve rei e rainha em seu encontro inicial. Aos poucos, tal estrutura passa de quatro elementos para três, ou seja, a tríade rei, rainha e Espírito Santo. Isto indica que há um espaço espiritual entre ambos. Em seguida, a tríade transforma-se na díade rei e rainha, significando que o Espírito Santo é internalizado através dos movimentos de fusão e separação do próprio casal. Surge, então, um ser bicéfalo, masculino e feminino, cujo corpo é formado pelas metades do rei e da rainha. Este hermafrodita não é, porém, o final do opus. Ele tem a mesma natureza do vínculo entre Átis e Cibele, já que as forças da paixão e da loucura permanecem na sombra arquetípica e, portanto, inconscientes e compulsivamente atuantes. O hermafrodita deste estágio do Rosarium ainda representa uma grande resistência para manter a coniunctio bem como um forte impulso para escapar dela em uma fusão com o inconsciente ou, então, em uma drástica separação repressora. Qualquer das soluções impede a transformação das forças envolvidas e leva ao drama da impossível fusão-separação.


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Depois de superada a inimizade dos quatro elementos, ainda existe sempre a última e mais forte oposição, que os alquimistas não podiam exprimir mais acertadamente do que pelo relacionamento recíproco do masculino e do feminino. Ao estabelecer esta contraposição, pensa-se primeiro na força da paixão e do amor, que obriga os pólos separados a se unirem, ao passo que se esquece a circunstância de que atração tão intensa somente é requerida onde existe a força oposta a separar as partes. (JUNG 1990,1, p. 85).


A opção do ego heróico foi a repressão do feminino. Separando radicalmente matéria e espírito, o ego não concebe que ambos são partes de uma totalidade maior que não lhe pertence – o arquétipo da coniunctio – caracterizado exatamente por uma sequëncia de fusões e separações, mortes e renascimentos. Ao separar demais, só resta ao ego reprimir para idealizar e sonhar uma união impossível na forma de desejo inconsciente reprimido.


O ego é de natureza conceitual e tende a manter os opostos radicalmente separados – um na consciência e outro no inconsciente. Por sua vez, a consciência lunar é imaginal e mais próxima do inconsciente. Busca manter os opostos distinguidos, mas lado a lado na consciência. Ambas as formas de consciência são necessárias, não devendo ser reduzidas uma à outra, ou eliminadas em detrimento da outra. Para Jung a solução vem através da função transcendente do Si-mesmo. O ego deve participar dela, desde que aceite transformar-se na sofrida seqüência de fusões e separações, mortes e renascimentos.

Os alquimistas trabalhavam em tais campos para transformá-los de uma dinâmica de fusão (na qual uma pessoa teme ou é possuída pelas emoções da outra) em um campo que possui uma dinâmica rítmica de separação e fusão, sem nenhuma ou outra polaridade dominante... O objetivo desta transformação era a ‘lapis’, aquela estrutura de Si-mesmo cuja base rítmica era a ‘coniunctio’ purificada de toda fusão negativa, assim como de seu outro lado, um distanciamento sem alma” (Salant 1998, p. 130).


O trabalho era feito através de um procedimento em duas fases, consistindo em separar a alma do corpo para depois, em um segundo movimento, reuní-los. A primeira fase constituía a unio mentalis, a união entre alma e espírito para superar a compulsão do corpo através da meditação. Separa-se a alma do corpo para juntá-la ao espírito. Mesmo sendo um movimento imposto ao processo mediante um artifício, não se tratava de uma solução mental e egóica para as forças em confronto, como foi a saída heróica. Era mais um meio de restringir os desejos do corpo e estimular o aparecimento de reservas espirituais – o vento escondido – possibilitando uma abordagem mais adequada aos impulsos de fusão e separação. A segunda fase, a reunião da unio mentalis com o corpo, seria o objetivo final do opus.

O corpo enfim será obrigado a se entregar e a obedecer à unidade dos dois unidos (anima et animus). Esta é a admirável transformação filosófica do corpo em espírito (spiritum), e do espírito em corpo... (JUNG 1990, 2, p. 235).


No Rosarium Philosophorum o processo é configurado através da seqüência coniunctio-nigredo-albedo-rubedo. Ocorrida a união representada pelo hermafrodita, segue-se a nigredo ou mortificação, pois a consciência solar entra em contato com seu oposto lunar, o lado feminino e ctônico da psique representado pela Grande Deusa e por Dionísio. É um momento de pânico e desorientação, já que a forma primitiva descrita no mito está presente e “tende na direção da fusão e literalização, uma atuação ou concretização de afetos e sentimentos de desejo”. (Salant 1998, p. 129).


A alquimia retrata tais tendências como um hermafrodita negativo ou dragão. Para enfrentá-lo ou elaborá-lo, segue-se a albedo (unyo mentalis). Como se viu, nela a meditação inicia a união da alma com o espírito, separando-a do corpo. Em seguida, dá-se a reunião do corpo não apenas com a alma, mas com o espírito, através da imaginação da alma. Se a meditação começa por iniciativa do ego, o mesmo não se pode dizer da imaginação. Da mesma forma, a atitude que leva à seqüência coniunctio-nigredo-albedo-rubedo deve ser de início uma decisão do ego, mas depois corre por conta do Si-mesmo.


O espírito não é imposto sobre o processo como um conjunto de regras ou ética. Mas, como os alquimistas insistem em que se tome ouro para fazer ouro, é claro que algo dessa atitude espiritual deve também existir antes que se possa lidar com tais formas horríveis da coniunctio (Idem, p. 134).


De um modo geral, a psicanálise e a psicologia do desenvolvimento consideram a desordem e o caos sob um ponto de vista negativo, significando ausência de sentido, isto é, falhas no equilíbrio psíquico. Este ponto de vista localiza e separa os opostos, mas não os integra, nem transforma, apenas explica-os, reduzindo-os a significados mentais alheios ao campo de sua vivência. Estreitamente ligadas ao caos e à desordem, paixão e loucura são, na verdade, excluídas da experiência psíquica e, portanto, adiadas ou reprimidas. Ao contrário, a alquimia considera o caos e a ausência de ordem como conseqüências de sucessivas uniões transformadoras que devem ser buscadas e vividas. As experiências de desorientação, culpa, excesso ou falta, desmembramento e desestruturação que constituem a nigredo são aspectos positivos e bem-vindos que fazem parte do processo alquímico de transformação.


Na nigredo ilustrada pelo Rosarium, a alma aflita abandona o corpo do hermafrodita e parte para o céu em busca de uma nova iluminação espiritual. O corpo morto (sem alma), que representa o ego e suas defesas, fica na terra, aguardando o retorno da alma. Para tanto, deve-se renunciar à consciência solar, significadora e interpretativa, para dar lugar à fluidez e instabilidade da consciência lunar. Ao mesmo tempo em que ainda se está na nigredo, inicia-se a albedo ou fase de iluminação espiritual. O ego vê-se abandonado diante das forças desconhecidas do Si-mesmo que entram em ação. De fato, ele experimenta o mundo imaginal do inconsciente psíquico como caos, desordem e loucura. A purificação pelo orvalho que cai do céu significa a dissolução das defesas rígidas do ego. Cria-se assim o Si-mesmo espiritual.


A exigência dessa tarefa esgotará qualquer um ao limite. Ela implica em lidar com estados mortais de fusão e ser transformado por eles, sofrendo simultaneamente a tentação de cair de volta no inconsciente – o dragão ou veneno. Isto significa fundir-se com as energias que levam à atuação ou à cisão da experiência. No entanto, conseguida a vitória, o vento escondido aparece, ou seja, emerge do campo de fusão uma experiência espiritual mais elevada. (Idem, pg. 133).


A albedo, porém, tampouco significa o empreendimento completo do opus, pois falta integrar conscientemente as energias corporais e emocionais do inconsciente somático. Esta falta significa limitar a alma a uma existência exclusivamente espiritual em um corpo imperfeito (inconsciente). Na alquimia em geral, o espírito ascende da matéria e a unidade do pensamento alquímico deve ser restabelecida. Em outras palavras, espera-se que o corpo junte-se à consciência transformada que resulta de uma nova ligação entre alma e espírito. Jung também considera a albedo uma experiência essencialmente espiritual, faltando-lhe o sangue da vida que brota do relacionamento afetivo entre os indivíduos. O trabalho alquímico e a individuação requerem não apenas a participação da função do pensamento, mas igualmente do sentimento, da sensação e da intuição. O alquimista fala de transformar pelo fogo o branco da tintura, alcançando a vermelhidão do estágio da rubedo. Somente na passagem de um Si-mesmo espiritual para um Si-mesmo incorporado a alma pode trazer o corpo morto do hermafrodita para a vida.


... a matéria prima pode ser o Si-mesmo em uma certa condição espiritual que ainda não inclui uma transformação do corpo em um veículo mais sutil de consciência, nem tampouco tal estrutura de Si-mesmo inclui, necessariamente, uma integração dos níveis pessoal e cultural da vida reprimida escondida no corpo. Este domínio levaria a um novo Si-mesmo que experimentaria o fogo da paixão – para usar um conceito da alquimia – sem dissolver-se em perigosos estados de fusão ou regressão e negação. Começando desde o início com um Si-mesmo espiritual, pode-se trabalhar depois em sua transformação para um produto final, a lapis alquímica que integra o corpo, os processos instintivos e o desejo. (Idem, p. 144).


Assim como os aspectos imaginais do inconsciente psíquico precisam ser vivenciados para que deles surja um sentido de confiança e fé nos objetivos e na natureza imaginal e fluida do Si-mesmo, da mesma forma as sensações e emoções que constituem o inconsciente somático devem ser vivenciadas e integradas na consciência. Em outras palavras, a vivência da albedo fortalece o espírito, mas o corpo ainda não é sentido como uma fonte de instinto e paixão que podem ser controlados. O desejo permanece em seu estado inconsciente e compulsivo. No entanto, a vivência imaginal da fase albedo é fundamental para a vivência menos ameaçadora da paixão na fase rubedo.


O ponto de vista alquímico também vê o desejo como fundamental para a realização da coniunctio, mas abre a possibilidade de não reprimí-lo e tampouco atuá-lo, lidando com ele através de uma consciência transformada. Esta consciência leva em conta o Si-mesmo espiritual, condição que a psicanálise, de um modo geral, não considera.

Mesmo em seu estado transformado – a transformação significada em uma das imagens alquímicas como o cortar as patas do leão – o desejo é o ingrediente chave. É o fogo que dirige o processo. (Idem, p. 130).


Portanto, não deve ser eliminado, nem definido, mas transformado. Salant cita a psicanalista francesa Luce Irigaray, que fornece uma visão profunda e esclarecedora do desejo e do espaço ou intervalo no qual a união pode ser experimentada.


O sujeito que oferece ou permite o desejo, transporta e, assim, envolve ou incorpora o outro. É bem mais perigoso se não houver um terceiro termo, algo que dê limites e contenção ao relacionamento. Este limite pode ser a divindade, a morte, a ordem social ou cósmica. Se ele não existir, o relacionamento em si torna-se todo poderoso. (Idem).


Este intervalo designa a posição intermediária alcançada na fase albedo do Rosarium, mediante a integração das energias imaginais do inconsciente psíquico que resultam na criação do Si-mesmo espiritual. Jung refere-se a ele como algo que não é nem material, nem espiritual, nem abstrato, nem concreto, nem real e nem irreal, pois corresponde ao espaço simbólico da alma. Os alquimistas utilizavam a expressão “vento escondido” e com ela nomeavam – “a atitude espiritual necessária para se lidar com o dilema impossível da fusão-distanciamento que caracteriza a prima materia no mito de Átis-Cibele”. (Idem, p. 134).


A partir desse espaço é possível lidar com a paixão e a sexualidade sem reprimí-las ou dissociá-las. Luce Irigaray diz que todo relacionamento deve levar em conta o símbolo como um terceiro elemento, caso contrário, torna-se absoluto e todo poderoso, ou seja, a única referência para si mesmo. Em psicologia analítica diz-se que o relacionamento está possuído pelo arquétipo da coniunctio. Duas pessoas que se relacionam precisam estar sempre atentas ao fato de que fazem parte de um mistério maior que as abrange e influencia, isto é, a realidade arquetípica. Esta realidade arquetípica pode estar representada, por exemplo, pela díade Átis-Cibele e seu drama de fusão-separação. A falta de discriminação entre os aspectos arquetípicos e a individualidade de um relacionamento sempre conduz à formação de uma sombra defensiva que impossibilita a experiência transformadora da coniunctio.

Diante de tais considerações, cabe refletir sobre a tão referida inconstância de Eros. Não seria ela exatamente seu modo natural de evitar as únicas saídas estagnantes que o ego insiste em lhe dar, ou seja, a fusão ou o isolamento em diversos graus que impedem a realização trabalhosa e sofrida da coniunctio? “Neste caso, Eros pode ser visto como o princípio que promove a função transcendente”. (LIMA, 2003, p. 118-119).


Segundo Salant, qualquer resolução dos problemas de fusão-separação que não considere a visão imaginal, mas apenas o ego solar e racional, deixa à margem aspectos do psiquismo que não são integrados pela consciência. Estes aspectos ficam isolados na personalidade normal, ocultos por defesas de caráter e excluídos da função auto-reguladora e compensatória do eixo ego/Si-mesmo. Constituem “partes loucas” ou psicóticas da personalidade e expressam-se como distúrbios limítrofes e narcisistas que caracterizam extremos defensivos do ego.


Considerando o drama da impossível fusão-separação como um campo sempre presente na relação entre o ego e o Si-mesmo, a reação psicótica representa a possibilidade de reestruturação da consciência solar pela integração e realização dos aspectos lunares do inconsciente, única forma de dissolver as estruturas rígidas do ego que bloqueiam e impedem a transformação desejada pelo Si-mesmo. Esta transformação é propiciada pela efetivação da coniunctio, desde que purificada de seus extremos negativos constituídos, de um lado, pela fusão e de outro, pelo isolamento. A alma presentifica-se de fato quando lhe é possível unir os opostos em uma posição intermediária que equilibra continuamente consciência e inconsciente, ego e Si-mesmo, fusão e separação. Uma tarefa que só pode ser feita por meio de quem lhe é semelhante: Eros, o deus cuja natureza última é o movimento e a transformação – a união seguida da morte e do renascimento. Com certeza reluta-se sempre em se comprometer com tal atividade potencialmente dolorosa, sobretudo quando já se formaram fortes defesas em mal sucedidas tentativas anteriores.


Deve-se aprender como entrar e sair do campo de união; e até que se adquira experiência suficiente para lidar com a área, não se entrará inteiramente, permanecendo-se narcisisticamente isolado ou, então, tentar-se-á entrar para ser engolido de imediato pelas energias magnéticas do campo, fundindo-se a elas. O empreendimento completo é extremamente doloroso, pois antigos laços são abertos e saltam no processo. Contudo, descobre-se o próprio caminho somente através de repetidas excursões no território e, através do sofrimento, os laços feridos podem ser propriamente curados com o tempo. (Idem p. 132-133).


RESUMO


Este artigo relata e comenta algumas das idéias de Nathan Schwartz-Salant em seu livro de 1998, O Mistério do Relacionamento Humano. O livro tenta demonstrar que estas idéias desenvolvem posteriormente o ponto de vista de Jung sobre como o opus alquímico pode representar um modo alternativo para lidar com os lados ameaçadores da experiência amorosa e da união ao trabalhar em sua transformação através da repetição de seqüências de uniões, mortes e renascimentos. Esta transformação implica em um sacrifício do ego, que desiste de suas defesas para dar lugar à totalidade do Si-Mesmo.


ABSTRACTS


This article relates and comments upon Nathan Schwartz-Salant’s ideas in his 1998 book The Mystery of Human Relatioship. The book attempts to demonstrate that these ideas further develop Jung’s view about how the alchemical opus could represent an alternative way of dealing with the threatening sides of the experience of love and union by working upon their transformation through repeated sequences of unions, deaths and rebirths. This transformation implies in a sacrifice of the ego that gives up defenses and gives place to the wholeness of the Self.


REFERÊNCIAS


JUNG, C.G. (1993). Símbolos da Transformação. OC 5. Petrópolis: Vozes.

__________.(1990). Mysterium Coniunctionis. OC XIV/1-2. ___________.

LIMA, C.M.C. (2003). O Amor, seu tudo, seu nada: ânsia íntima da alma. Monografia SBPA-RJ.

SALANT, N.S. (1998). The Mystery of Human Relatioship. Alchemy and the Transformation of the Self. New York: Routledge.


Palavras-chave


Relacionamento humano, paixão, amor, mito, alquimia e transformação do Si-Mesmo


Key-words


Human relationship, passion, love, mith, alchemy and transformation of the Self.


 
 
 

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